sábado, 3 de outubro de 2009

120 dias de sodoma explicados psico-simbólicamente em 4 lições




Estou começando a achar que Lars Von Trier não somente é o diretor mais egocêntrico do mundo. Pode ser um dos mais confiantes e certos sobre si mesmo, com bons motivos. Não há dúvida que o trabalho dele nesse seu último "AntiCristo" é admirável e complexo, mesmo que desgostoso. O apego ao psicológico, simbólico e o "vamos explicar o funcionamento das engrenagens do mundo" é profundo. O suficiente pra quase justificar a enorme violência mental e gráfica desse filme. Não sobra pedra sobre pedra.

Nunca assisti outro filme que mais se adequa ao suposto gênero "terror psicológico". É tudo altamente psicológico. O grotesco vai se desenvolvendo numa progressão aritmética com controle, não é um trêm desgovernado se aproximando geométricamente. Boa parte dos 4 capítulos do filme lidam somente com medo subjetivo e muita psicanálise. Von Trier sem dúvida foi várias vezes ao psicólogo durante o processo da escrita do roteiro.

Em meio à toda pressão da atmosfera densa, há planos lindamente orquestrados. E certamente à os perturbadores. Falando especificamente só da direção, ela é muito bem feita. Fora umas vezes que Lars deixou seu cinegrafista com parkinson brincar com a câmera, o trabalho é do caralho. Ambientes excelentemente captados, fotografia ótima, efeitos de lentes. A câmera na mão é realmente usada à exaustão, mas geralmente competente e com uso de zoom muito bom. Aliás, fazia tempos que não via o uso de slowmotion tão bem aproveitado. O único porém é o que eu já ressaltei até na postagem anterior, sobre o "Deixe Ela Entrar". Por mais que falem como a tecnologia é incrível, há uma cena com computação gráfica que causou mais risos contidos do que temor. Lars poderia ter pensado em uma coisa muito mais sútil e menos ridícula. Fora isso, tudo ajuda muito a criar a atmosfera densa do filme.

A polêmica violência é forte, meu amigo. Não recomendo pra ninguém, mas como disse, a história tem um viés de usar muita simbologia para explicar os porquês das ações dos personagens(interpretados loucamente pelo Willem Dafoe e pela Charlotte Gainsbourg).
Tudo é mostrado com suficiente clareza. É tudo que "120 Dias de Sodoma" poderia ser e não é. Nesse filme do Pasolini, as coisas acabam artisticamente estúpidas e gratuítas. Em Anti-Cristo, existem as motivações reais dos personagens. Não sei se todo mundo capta as mesmas simbologias e toques que o roteiro vai largando e depois mostra à que vieram, mas os pontos chaves me pareceram suficientemente claros. Isso tudo ainda assim não legitima o sadismo de Lars Von Trier nem o masoquismo da plateia em certos momentos. Se sentir uma revolta e quiser sair do cinema, não sinta-se constrangido. Contei 11 pessoas que saíram até um pouco depois do meio do filme.

SPOPILER
Me sinto compelido a deixar minha interpretação de certas partes do roteiro. Ela (a personagem nunca é nomeada) não é mentalmente muito sã. A prova é a troca de sapatos que ela sempre fez com o filho. Agregando então o trauma de perder o filho, Ela começa a se odiar. Também passa a odiar-se não só particularmente, mas como mulher. Como o seu filho morreu enquanto Ela e Ele transavam, ela começa a culpar essa carnalidade que existe nas mulheres. A carnalidade feminina foi interpretada como obra do Demônio pelo Cristianismo por séculos, principalmente durante a Inquisição. A perseguição de mulheres naquela época é justamente o tema da tese de mestrado/doutorado d'Ela. Juntando-se isso, obtemos o estado mental completamente desequilibrado que Ela desenvolve. Ela passa a ter um comportamento ninfomaníaco, querendo escapar da dor de perder o filho, mas ao mesmo tempo se culpa cada vez mais por sua carnalidade. Ela se considera impura simplesmente por ser mulher. A natureza da mulher seria o motivo "justo" da Inquisição. Ela se considera o AntiCristo. Tá aí o porquê do título do filme. Na penúltima cena, Ele queima o corpo d'Ela numa pira de madeira pra não deixar vestígios, um reflexo das fogueiras "bruxas", queimadas na verdade só por serem mulheres.

Outro simbolismo muito presente é a Natureza. Em vários momentos, há discussões de como a Natureza seria ameaçadora ou acolhedora. Além do diálogo sobre as bolotas do carvalho, pude perceber um embate entre "a Natureza tira X a Natureza dá". A Natureza semea, ao mesmo tempo que isso indica a sua futura morte, no caso do carvalho. A Natureza proporciona uma mata linda e sufocante ao mesmo tempo. A Natureza proporcionou um filho à Ela e Ele, assim como o tirou. Quando ele está na toca da raposa se escondendo, um corvo faz barulho, ameaçando chamar a atenção dela para o marido escondido. O corvo é a natureza que tira, que assusta, que atrapalha. Ele precisa matar o corvo, se não vai ser descoberto. E assim o faz, servindo de alegoria ao uso da Natureza pelo homem, quando esta lhe convém ou não. No Epílogo, Ele passa por uma amoreira, se alimentando dela, a Natureza que dá.

FIM DO SPOILER

Bom, não recomendo pra estômagos fracos, nem pra médios, nem pra fortes. Não sei pra quem recomendar esse filme. Talvez psicólogos, talvez cinéfilos. Acho que o mais certo é para curiosos, como foi o meu caso. Acredite, eu quase não quis ir, decidi bem de última hora. Pra mim valeu o esforço de ficar na sala de cinema até o fim.
Coragem, lembre-se que a curiosidade matou o gato. Ou a sanidade.


imdb:http://www.imdb.com/title/tt0870984/
Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/Antichrist_(film)
Trailer: www.youtube.com/watch?v=LO-TNfPzh_k


"Grief, Pain, Despair and The Three Beggars"

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