segunda-feira, 2 de agosto de 2010

"Hay que endurecer pero sin perder la ternura..."




Morte da infância, inferno físico e astral, niilismo, hedonismo, déspotas políticos, anti-militarismo, homenagem/paródia à cultura espânica, idealismo, adultescência e a Odisséia. Isso tudo e muito mais é o Toy Story 3.
Quem não quer estragar nenhuma surpresa, não siga na leitura. Só siga imediatamente pra um cinema que esteja passando Toy Story 3.

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Ah, como é bom lavar a alma com um filme bom depois do desastre audiovisual do “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” de ontem. E relembrar a infância no meio disso tudo.

Começemos pelo começo. O filme pode ser apreciado por qualquer um, mas em especial pra quem viu os outros Toy Story’s quando era criança. Os personagens envelheceram junto com o público da época. Com o garota Andy indo pra faculdade, ele tem que dizer adeus a sua infância, personificada nos seus já clássicos brinquedos, Woody, Buzlighter, Senhor-Batata, Rex, etc. Quase todo mundo tá no barco. E todos outros novos personagens brinquedos são igualmente criativos e muito bem apresentados ao público. Destaque para as versões fresca mas nem tão burra da Barbie e o metrosexual afeminado Ken.
Eis o principal tema desse Toy Story 3: a passagem da infância para algo mais próximo da vida adulta e toda nostalgia e dureza que isso pode causar. Atire a primeira pedra quem não lacrimejar com o adeus dos briquedos, a mãe de Andy olhando o quarto vazio do filho e por fim Andy apresentando os seus brinquedos à Bonnie, a garota que passa a brincar com os brinquedos. E a dureza com a qual o filme retrata o tema é um sinal da adultescência que a minha geração vive.

De início os brinquedos, principalmente o protagonista idealista Woody, não querem abandonar sua criança, Andy, mesmo com a tentadora possibilidade de serem amados por outras crianças em uma creche e assim recuperarem suas razões de existirem. Eis aí mais um dos pontos do filme, não deixar certos idealismos morrerem com o passar do tempo e na passagem infância-juventude. Por um lado a infância total é vista como algo próxima da barbárie, simbolizada nas crianças do primeiro nível da creche que se mostram “monstros”sem nenhuma noção de boas regras de convívio na sociedade e assim incapazes de brincar com os bonecos sem destruí-los. Por outro lado, quando Andy não quer se desfazer totalmente dos seus brinquedos o filme demonstra que ser completamente “civilizado” e adulto não é também o melhor caminho. No fim, o grande lance é encontrar o ponto de equilíbrio.

Quando os brinquedos do Andy acham a creche incrível num primeiro momento, Woody chega a chamá-los de “egoístas” porque não querem voltar pro Andy, apesar de que supostamente na creche eles estarão fazendo mais crianças felizes, o que se caracteriza como altruísmo e não egoísmo. Aí reside um pouco do individualismo de Toy Story, mas enfim, não dá pra esperar outra coisa de uma obra de arte que reflete muito bem o mundo contemporâneo, principalmente o mundo da visão americana e ocidental. E o Brasil, um parque de diversões com macacos pro Sylvester Stallone, é assim também.

Vamos ao próximo tópico, o hedonismo e o niilismo. Lotso, o urso de pelúcia que comanda os brinquedos da creche de todas maneiras possíveis, se torna um niilista/hedonista após descobrir que sua dona comprou outro urso igual a ele depois que ele foi esquecido em um piquinique. O esquecimento não foi uma desvalorização do urso, mas ele não percebe. A garota dormiu e foi posta no carro pelos seus pais sem ser acordada. Logo, foi um infortúnio do acaso. Acaso que muitos culpam Deus ou qualquer outra coisa. No caso do filme, como as crianças são os deuses dos brinquedos, o urso culpa ela por ter sido deixado de lado e depois substituído por outro urso igual.

Dessa forma, o urso deixa de acreditar. Perde fé. Morre sua ideologia. Enfim, ele assume uma retórica niilista por não acreditar em mais nada e ser um nada pois “não passa de um monte de pano que não tem função nenhuma nem importância, só esperando a vez de ir para o lixão”, e também se torna um hedonista porque passa a cuidar de seu umbigo de pelúcia acima de tudo, buscando algum prazer à qualquer custo na sua existência sem propósito.

Bom, é nesse caminho que Lotso se torna um déspota e ditador dos brinquedos da creche. Paga de bonzinho para os brinquedos novatos do Andy, enquanto que na verdade só quer deixa-los confortáveis o suficiente para serem os “proletários” que devem aguentar as crianças em estado de barbárie do jardim A, que só sabem mordê-los e quebrá-los. Tudo em prol de um bem maior. Bem maior que só corresponde a um estado de bem estar social para o “topo da pirâmide” e seus aliados, como bem fala o Ken. Os brinquedos novatos são a bucha de canhão, os que devem se sacrificar bastante para manter os privilegiados com seus privilégios e muito provavelmente nunca conseguirem sair dessa situação. E assim se desenrola uma clássica disputa de classes transportada ao mundo dos brinquedos pelos roteiristas marxistas da Pixar. Tudo em uma creche que consegue ser transformada em um lugar assustador, uma prisão com celas, um trilha sonora de gaita de boca e até um solitária, uma caixa de areia com tampa =]

Céus, será que a Veja não percebeu toda essa subversão esquerdóide antes de publicar uma crítica positiva do Toy Story, esse Encouraçado Potemkim do século XXI?


A parte do lixão e sua fornalha são uma representação do inferno, sem dúvida. E sabe, eu quase acreditei que a Pixar iria arriscar um final triste (calma, tão trangressor ainda não!) com todos brinquedos morrendo. Morrem juntos, mas com seus idealismos até o fim. Mas claro, eles se safam e voltam a ter seu lugar ao sol. Dá pra ser feliz, acreditar no bem, justiça, um pouco de idealismo juvenil. Enquanto isso, mesmo depois de salvo por Woody de uma morte certa, a maldade hedonista de Lotso não some quando os brinquedos precisam que ele aprte um botão para freiar a esteira da fornalha do lixão. Depois o final reservado a ele é uma espécio de inferno com sofrimento infinito, amarrado ao capô de um caminhão de lixo. Não dá pra ajudar quem não quer ser ajudado. E o crime não compensa, gurizada.

Muito bacana é a avacalhação aos militares, quando o urso reprograma Buzz pra obedecer ele e vigiar os brinquedos rebeldes do Andy que querem escapar da creche. Ele vira um completo Jarhead, um cara com um cérebro tão cheio quando um vaso vazio.

Passando para mais um momento de brincadeira com esteriótipos, também protagonizado pelo Buzz, ele se torna o perfeito espanhol de tourada quando os brinquedos do Andy tentam reprogramar ele de novo pra memória dele voltar. O bacana é que juntamente com uma certa avacalhação, ele também fica mais fodão. E tudo isso ao som de Gypsy Kings. Sensacional. Melhor que isso só uma guriazinha de 7 anos que tentava requebrar ao som do flamenco dos créditos. Mais hilário ainda.

Pra fechar, só uma olhadela na premissa e desenvolvimento do roteiro do Toy Story 3. Ele é uma reletura d’A Odisséia, uma jornada de um herói de volta para a sua casa. A mesma premissa dramática se encontra em boa parte de toda a ficção já criada pela humanidade. E no Toy Story não é diferente. Os brinquedos passam quase todo o filme tentando resolver o problema de como fugir da creche e voltar pra casa de Andy. No fim, não retornam à casa de Andy, mas a de uma outra menina. Pode não ser a mesma casa, mas é novamente um lar, seguro, onde existe outra pessoa que, tal qual o Andy uma vez já fez, vai amar os brinquedos. A alegoria da volta para a casa, ou melhor, da volta para um estado original das coisas se revela inclusive no primeiro e no último plano do longa. A primeira coisa que vemos é um céu azul com algumas nuvens. Depois a câmera se movimenta pra baixo e revela uma planície desértica, clássica de um bom faroeste. Já o último plano é o movimento contrário. Mostra-se a casa da nova dona dos brinquedos, a câmera afasta e sobe, revelando um céu azul com nuvens, idêntico ao primeiro plano do filme. Essa galera da Pixar fez muito bem o dever de casa.


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Em suma, vale muito! Um filme muito bem feito em amplos sentidos e que representa muitas coisas, ainda mais para quem cresceu com esse filme na cabeça e não teve a chance de dar um adeus formal à ele e a uma parte da nossa própria infância.

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